Era uma vez...
24/12/2011

Era uma vez...

Contar histórias é uma característica natural do ser humano. E, no meio empresarial, o varejista faz isso espontaneamente.
Agora é o momento de profissionalizar essa prática e atrair mais clientes com experiências que traduzem o espírito da marca
Minutos antes de subir ao altar, a noiva perde o buquê de fl ores. Sua salvadora é a atendente de um supermercado, que confecciona um novo ramalhete com o que tem à mão e corre até a igreja para garantir o sucesso do casório. Você já deve ter assistido a essa cena na TV ou na internet, durante um comercial do Pão de Açúcar. A história aconteceu de verdade, na loja da rua Lavandisca, no bairro paulistano de Moema.
Seguindo o conceito de storytelling (ou contação de história), campanhas como essa devem se repetir cada vez mais à medida que as empresas deixarem de contar boas histórias apenas por intuição. Essas fábulas, agora, viraram coisa de profissional.
Não é de hoje que as narrativas, reais ou fantasiosas, chamam a atenção do público. Rodas em torno de fogueiras são tão antigas quanto a própria humanidade. Pesquisadores descobriram que os homens da Idade da Pedra já contavam histórias com o uso rudimentar da fala combinado a gestos, expressões, rituais religiosos e pinturas nas paredes das cavernas. Basicamente, storytelling é compartilhar o conhecimento. Mais que isso, é uma forma de conseguir poder e influenciar os demais por meio desses contos.
Muitas dessas histórias são suportadas por heróis ou seres míticos. Jesus Cristo, Hitler e Lula, cada um em seu tempo e com distintos graus de influência, conseguiram arrebatar grandes rebanhos de seguidores pela forma como contavam suas histórias. No mundo empresarial, também há exemplos de quem conseguiu façanhas consideráveis. É o caso da Apple, que ficou anos à margem do mercado. Com o retorno do fundador Steve Jobs, o salvador, a empresa deu a volta por cima e criou símbolos mundiais do consumo que provocam filas quilométricas de fãs apaixonados a cada lançamento.
No Brasil, exemplos de quem conseguiu imprimir sua marca às empresas são Alexandre Tadeu da Costa, que aos 17 anos pegou US$ 500 emprestados de um tio para fazer ovos de Páscoa e hoje é presidente da Cacau Show, a maior rede de franquias de chocolates finos do mundo; Caíto Maia, o roqueiro que trazia óculos da Califórnia para vender no Brasil e hoje inspira seus jovens colaboradores na Chilli Beans; ou Ricardo Nunes, o empresário que começou a trabalhar aos 11 anos vendendo mexerica num farol de Divinópolis (MG) e até hoje pode ser visto atendendo os clientes em corredores de alguma loja da Ricardo Eletro.
Por estar na linha de frente do relacionamento com o consumidor, não falta material ao varejista atento. Empresas que lidam com o consumidor final têm histórias acontecendo ali o dia inteiro: são engraçadas, curiosas, incríveis ou trágicas, e muitas vezes eles não percebem, não transformam isso num ativo , explica Marcelo Douek, sócio-diretor da Lukso, consultoria de marca especializada em storytelling fundada em 2009.
Para Douek, tanto a trajetória do fundador da empresa quanto a experiência testemunhada por um funcionário no ponto de venda podem render uma boa história. Além de fortalecer a cultura interna, uma história bem contada faz com que o consumidor perceba a harmonia do discurso.
Primeiro capítulo
Como os romances dos livros ou do cinema, a história corporativa precisa de começo, meio e fim. E principalmente transmitir uma mensagem. Joni Galvão, sócio-fundador da Soap, resume a contação de histórias: o varejista precisa definir o que quer que seu consumidor pense, sinta e faça. A história tem de ser honesta , ressalta. Para soar verdadeira, a empresa precisa ter um posicionamento claro. É o que fazem a Harley-Davidson, fabricante de motocicletas americana tão querida por homens de meiaidade que alguns chegam a tatuar a marca no próprio corpo; ou a Starbucks, com a promessa de ser uma extensão da casa e do trabalho, criando um ambiente confortável e ao mesmo tempo sóbrio o bastante para quem está numa conversa profissional. A Coca-Cola é outro case de sucesso. Há 125 anos consegue resumir sua história em uma única palavra: felicidade. Isso fica evidente na campanha Happiness Machine , que colocou e filmou a reação das pessoas máquinas de refrigerante em locais públicos e surpreendia os consumidores com sanduíches gigantes, flores, pranchas de surf e refrigerantes, claro. Ou no caso do Happiness Truck, caminhão que fez a alegria dos moradores de uma favela carioca.
Há alguns meses, uma campanha global da Coca-Cola mostrava razões para ser otimista. E a mais recente, Cada garrafa tem uma história , realizada na América Latina, mostra como a marca modifica para melhor a vida de milhares de pessoas. Algumas dessas histórias, como a do catador Tião Santos e do instrutor de varejo consciente Marcos André França da Silva, foram parar nas latas e garrafas de Coca-Cola. As histórias também ganharam tratamento cinematográfico em formato de documentários de curta-metragem para TV, cinema e internet. Toda história tem valores por trás. A empresa tem de descobrir que tipo de transformação quer provocar no consumidor, desaguar no vendedor, no design, na experiência de compra , explica Joni. Mais do que engajar o consumidor, você tem que engajar a cadeia. Consumidor é consequência.
A evolução do branding
Antes de replicar uma história, mesmo que internamente, é preciso ter o DNA destrinchado para então transmitir uma mensagem redonda ao consumidor. É o que tem feito a Casas Bahia. A história da rede se sustenta na experiência de vida do fundador Samuel Klein, nascido na Polônia nazista, que chegou ao Brasil na década de 50 com a família. Aqui, com US$ 6 mil no bolso, comprou uma casa e uma charrete com a qual vendia roupas de cama, mesa e banho a uma carteira de 200 clientes. Em seguida, fundou a Casas Bahia, que aceitava pagamentos parcelados.
Ao completar 59 anos, a rede criou uma campanha para contar sua própria trajetória a partir dos sonhos realizados por milhares de consumidores de baixa renda. Em Quem faz nossa história é você , os clientes enviam seus casos de vida com a Casas Bahia e os sorteados têm sua história contada em comerciais. É o caso de Cristina Almeida Passuelo Rocha, que acordava com dores nas costas por conta do colchão velho e foi surpreendida quando o marido, que dizia estar sem dinheiro, comprou um novo no crediário criado por Klein décadas atrás.
Quando colocamos o freguês para falar sobre o que a Casas Bahia representa, reunimos depoimentos valiosos, únicos, cheios de emoção. É uma satisfação utilizar tudo isso em nossa comunicação , ressalta Flávia Altheman, diretora de marketing da rede. Os vendedores são estimulados a descobrir essas histórias durante o atendimento ao cliente e, desde 2007, muitas delas vão parar na televisão. Nosso objetivo é permanecer na mente dos fregueses como a marca que está pronta a atendê-los com respeito, melhores oportunidades e dedicação , completa Flávia.
Tal como a Casas Bahia, o Pão de Açúcar se descola da imagem do herói fundador nesse caso, Abílio Diniz, filho do criador e cria sua própria narrativa. De acordo com Marcelo Bazzali, diretor de marketing do grupo, há dois anos o departamento de recursos humanos é responsável por colher e divulgar internamente as histórias vivenciadas por colaboradores e clientes. Em 2010, uma coletânea desses acontecimentos gerou o livro Histórias de encantar e fazer feliz. Neste ano, quatro delas viraram comerciais para a TV.
A ideia é reforçar os principais valores da marca, diz Bazzali. O primeiro deles, sobre a noiva que perde o buquê quase na hora do casamento, traduz a paixão da bandeira Pão de Açúcar por servir ao cliente. O segundo ressalta o respeito ao planeta e traz a história de trigêmeos que, desde cedo, aprendem a preservar o meio ambiente em casa ou na unidade verde da rede. O terceiro traduz a confiança no colaborador ao mostrar a vida de uma cliente que sabe tudo sobre peixe, mas não deixa de ouvir a opinião do líder de peixaria da loja. E o quarto fala sobre qualidade de vida ao contar a trajetória do maratonista que começou a correr com o pai nas corridas do PA Kids. Outras peças desse tipo devem ser gravadas para a bandeira Pão de Açúcar, todas com o fio narrativo guiado pelo mote da marca: lugar de gente feliz. Alguma discrepância?