Nunca é tarde pra acertar
19/11/2011

Nunca é tarde pra acertar

Edwiges era a mais antiga operadora de check-out da loja de seu Carlos Varanda. No Super Varanda, quem ensinava o ofício de “caixa” era Edwiges. Ela nunca participou nem sequer de um treinamento. Aprendeu no dia a dia, com pouca ciência e muita intuição. O pessoal acha isso bonito.
Ela também achava. Achava ainda que ruptura, palavra da qual pouco ouvira falar, nada tinha a ver com operação de check-out.
“Coisa de estoque, reposição, compras.”
O varejo de seu Carlos tem 40 anos. Começou mercearia, como manda o figurino, e cresceu na década de 1980. Edwiges chegou à loja na década seguinte, como uma das operadoras de check-out. Tinha talento inato pra função, mas era acomodada. “A vida como operadora ‘tá mais do que boa.” Dizia isso porque talvez se sentisse reconhecida. Edwiges era a operadora-padrão do Varanda.
Mas ser padrão numa empresa não quer dizer que se seja padrão de eficiência pr’um setor. E se a empresa for ruim? (...) O Super Varanda há muito não era um primor de operação supermercadista. Seu Carlos estacionara seu empreendimento num tempo que só valia na memória. Na década de 1990 a loja tinha 10 check-outs, 1,2 mi m2 de área de vendas e 40 vagas de estacionamento. Na segunda década do Século 21, nada havia mudado.
O mais importante, contudo, fora alcançado... Os três filhos ‘tavam formados, tinham estudado no exterior e eram doutores. O mais velho, advogado, o do meio, médico, e o caçula, economista. O Varanda parecia fadado à venda. Mas por uma dessas adoráveis coincidências da vida, o mais novo, Toninho, resolveu pegar as rédeas do negócio do pai. Seu Carlos ficou entusiasmado. Edwiges, a princípio, não.
Toninho descobriu, em poucos meses, que o Super Varanda só estava vivo porque a concorrência braba ainda não havia chegado ao bairro. Tinha muita coisa errada, inclusive nos check-outs. Então, ele contratou uma experiente fiscal de caixa, Sueli, o que de imediato irritou e feriu o orgulho de Edwiges. Ela perdeu o status de líder e, pela primeira vez, se arrependeu das quase duas décadas de serviços prestados ao Varanda.
A gota d’água se deu quando Sueli a corrigiu na frente d’uma cliente. Por mais educada que fosse Sueli, “era inadmissível”. O que pra Edwiges sempre fora artifício pra ganhar produtividade, revelou-se um erro grave aos olhos da nova gestão do Varanda.
— Per’aí, dona Edwiges. — Sueli a interrompeu enquanto passava os produtos da cliente no leitor de código de barras.
— A senhora ‘tá multiplicando o código de barras desse suco de uva, mas há sucos de outros sabores na compra...
A experiente operadora riu sarcasticamente e, impedindo a fiscal de continuar sua explicação, disse:
— Isso se chama eficiência. Por que eu vou passar item a item se todos têm o mesmo preço? Assim, ganho tempo.
— Isso se chama perda. A senhora pode multiplicar todos os itens da mesma marca, da mesma categoria, do mesmo sabor e do mesmo preço, mas se os itens multiplicados diferem em algum desses atributos, como no sabor, haverá um erro de registro, que prejudicará a gestão do estoque e causará ruptura na gôndola. Isso porque o sistema vai acusar a venda de 10 sucos de uva, quando na verdade foram vendidos apenas cinco, e vai ignorar a venda de outros dois de pêssego e três de morango, porque, da maneira como faz, a venda desses itens não será registrada. Então, nesse caso, a senhora pode multiplicar um de uva por cinco, um de pêssego por dois e um de morango por três. Se fizer como está fazendo, o estoque do de uva, no sistema, vai acabar antes de realmente ter acabado, e o estoque dos demais sabores vai sobrar no sistema e faltar na realidade. Isso vai trazer problema ao abastecimento da loja. A esse problema chamamos “estoque virtual”.
Edwiges estava envergonhada e irada, mas a vergonha era maior que a ira. Duas décadas de ignorância e erro...
O conhecimento só não dói quando a ignorância não causou danos.
— ‘Tô indo embora. — Disse Edwiges, saindo do check-out.
— Não posso mais ficar aqui.
Então foi a vez da fiscal ficar constrangida.
— Per’aí. Não tem problema...
Edwiges seguiu pr’o vestiário e depois pra casa.
 Sueli pediu desculpas à cliente e realizou o trabalho da operadora. Depois comunicou o ocorrido a Toninho, que compartilhou o fato com o pai. Ele sabia que seu Carlos gostava muito da velha funcionária e que a recíproca era verdadeira.
Por ordem de seu Carlos, foram Toninho e Sueli à casa de Edwiges. Tomaram café na cozinha e ouviram Edwiges, que não se lembrava de ter sido escutada assim jamais.
Toninho também falou, explicou seus planos pr’o Varanda e conquistou a confiança de Edwiges, que no dia seguinte ‘tava de volta ao trabalho.
Naquele mesmo mês, o Varanda passou a submeter todos os funcionários a treinamentos e cursos mensais.
Edwiges era uma das mais assíduas e entusiasmadas. Mas não era a única. Logo, a loja era referência de operação, em quase todas as áreas, e Edwiges voltara a coordenara equipe de operadoras. Sueli virou gerente. As expectativas pra empresa eram as melhores. Já havia até plano de expansão. Pr’o ano seguinte, a matriz ganharia mais mil m2 e cinco check-outs e uma filial seria aberta, no outro extremo do bairro.

Pesquisa: Gestão Informativo-Orus
Veículo: SuperHiper outubro 2011