O surgimento dos matadouros-frigoríficos no Brasil do início do século XX
15/10/2013

O surgimento dos matadouros-frigoríficos no Brasil do início do século XX

Até o surgimento da indústria frigorífica, no Brasil, na década de 1910, prevaleciam no país as charqueadas primitivas, e os matadouros municipais, que faziam o abastecimento local de modo bastante precário, exceto por alguns estabelecimentos que, no quesito instalações eram bastante atualizados relativamente aos seus similares franceses e alemães. Matadouros municipais diferenciados como os de Manaus, Belém do Pará, Recife, Maceió e Aracajú foram instalados com base em projetos e equipamentos importados da Europa.
Há referências também ao matadouro Santa Cruz, do Rio de Janeiro, e o de Carapicuíba, em São Paulo, capital.
As charqueadas e matadouros municipais foram importantes no abastecimento das capitais, mas operavam em condições pouco higiênicas, sem inspeção sanitária, produzindo para consumo imediato, exceto pelas carnes salgadas, de maior tempo de conservação. Tais estabelecimentos aproveitavam muito mal os subprodutos, na verdade aproveitavam quase que exclusivamente o couro e o sebo, este último obtido por via úmida em autoclaves, resultando em produto de baixa qualidade, desperdício de resíduos protéicos e, irremediavelmente, em danos ambientais.
Médicos bacteriologistas e veterinários estrangeiros
As exportações de carne do Brasil tiveram início em 1914, com 200 toneladas de carne. Nos anos seguintes, até 1920, foram exportadas outras 51.799 t de carnes processadas – não foi possível encontrar registro quanto ao tipo de produto; e 286.900 t de carnes, a partir de 1915. Entretanto, naquele período, ainda não havia a figura do inspetor veterinário. Os primeiros veterinários brasileiros, contratados para os serviços de inspeção sanitária para atuar nas indústrias que começavam a ser instaladas, diplomaram-se pela Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, no Rio de Janeiro, a partir de 1917.
Até então os responsáveis pelos “Postos Veterinários” eram “médicos bacteriologistas”, dentre os quais se destacaria o Dr. Franklin de Almeida, que dedicou sua vida profissional ao ensino da inspeção de carnes e defendeu duas teses sobre o tema, uma de doutorado na Faculdade de Medicina, e outra de concurso na Escola de Veterinária, ambas no Rio de Janeiro. Houve também inspetores veterinários estrangeiros como o inglês Thomaz Wood e o belga Charles Conreur, em estabelecimentos exportadores.
Formação e aperfeiçoamento dos inspetores
Grandes nomes dessa época, até hoje reverenciados pelos inspetores federais, foram alunos de Maurice Piettre, professor francês que criou e lecionou no Rio, segundo ele próprio “pela primeira vez no mundo” a disciplina de Inspeção de Carnes e Alimentos de Origem Cárnea, a partir de 1920.
Dentre os inspetores desse período mais referidos na história da Inspeção Veterinária está o Dr. Otto de Magalhães Pecego, que, em 1925, defendeu tese de doutorado na França sobre diagnóstico bacteriológico do carbúnculo bacteridiano. Mais adiante foi designado para instalação de uma das quatro Inspetorias Regionais, a de São Paulo – as outras três foram implantadas em Belo Horizonte, MG, Curitiba, PR, e Porto Alegre, RS. Anos depois, Magalhães Pecego seria homenageado como patrono da cadeira número 15 da Academia Brasileira de Medicina Veterinária, com sede no Rio.
É interessante salientar a importância que já se dava naquele tempo ao aperfeiçoamento dos médicos veterinários e engenheiros agrônomos, pois, a partir de 1918, o ministro Eng. João Gonçalves Pereira Lima começou a enviar esses profissionais para cursos de especialização de até dois anos de duração no exterior. No triênio 1918, 1919 e 1920, 77 técnicos do governo federal foram estudar nos EUA e Europa.
Os primeiros matadouros-frigoríficos
Surgia assim, mais ou menos ao mesmo tempo, o Serviço de Inspeção de Fábricas de Produtos Animais, precursor do SIF (criado como Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal em 1921), no dia 11 de janeiro 1915; a Medicina Veterinária Brasileira com a criação da Escola Superior no Rio de Janeiro – a profissão seria regulamentada no dia 9 de setembro de 1933 -, e a indústria de produtos de origem animal, mais especificamente da carne bovina, com a construção do primeiro matadouro-frigorífico nacional, da Cia. Frigorífica Pastoril, instalado em Barretos, SP, em 1913.
Este frigorífico foi construído por iniciativa do conselheiro Antonio Prado, considerado pelo Dr. Franklin de Almeida como o pioneiro da “industrialização e exploração da pecuária de corte do Brasil Central”.
O conselheiro era presidente e grande acionista da Cia. Paulista de Estradas de Ferro e pretendia utilizar, como realmente aconteceu, a estrada de ferro para fazer o abastecimento parcial de São Paulo, capital, e alcançar o porto de Santos com carne daquele que era o maior mercado de bovinos do estado.
Consta que a construção foi iniciada em 1909 e que, no ano de sua inauguração, abateu pouco mais de 28 mil cabeças de bovinos e 1,8 mil suínos. Em 1923, a empresa foi adquirida pela Sociedade Frigorífico Anglo, da família britânica Vestey, que mais tarde, em 1927, passou a explorar também a Cia. Frigorífica de Santos. A partir de 1927, o Anglo passaria a exportar carne refrigerada denominada “chilled beef” para o mercado de Londres em navios da “Blue Star Line”, da mesma companhia. No início da década de 1990, os Vestey venderam a indústria, que hoje pertence ao JBS Friboi.
O segundo matadouro-frigorífico foi o “Continental do Brasil”, cujo nome também aparece em relatos históricos como “Salamaria Continental”, construído em Osasco, SP, pela empresa “Land Cattle”. Em 1918 essa companhia seria adquirida pelo Frigorífico Wilson, que nessa época também instalou um frigorífico em Santana do Livramento, RS.
Mais tarde, a Cia. Wilson também teve uma unidade de abate e industrialização de suínos em Ponta Grossa, PR. A companhia seria vendida, em 1971, para um grupo empresarial argentino passando a se chamar Comabra, que manteve a marca Wilson. No início dos anos 90, a empresa foi incorporada pela Sadia, que ainda é detentora da marca no Brasil.
Em 1917, surgiria mais uma unidade do Frigorífico Anglo em Mendes, RJ, em edificações dotadas de câmaras frias que pertenceram à cervejaria Teutônia, da Cia. Brahma. A indústria seria abastecida com gado do estado de Minas Gerais e faria exportação de carne congelada. Sua desativação ocorreu em 1966 após um incêndio, segundo Leopoldo Costa do blog Stravaganza.
Esta mesma fonte faz menção a uma empresa de nome Companhia Frigorífica Rio Grande, de Pelotas, RS, que havia sido construída por estancieiros da região, tendo funcionado por pouco tempo até ser adquirida, em 1921, pela empresa britânica da família Vestey, dando origem ao Anglo de Pelotas, que encerrou os abates em 1979. O antigo frigorífico Anglo, que operou durante cinco décadas, deu lugar ao campus da Universidade Federal de Pelotas.
Também no ano de 1917, duas empresas norte-americanas de Chicago, instalaram suas fábricas no Rio Grande do Sul. A Armour, em Santana do Livramento, e a Swift, em Rosário do Sul, que em 1918 fez a primeira exportação de carne congelada daquele estado.
Por último, tivemos a unidade industrial do Frigorífico Armour, em Vila Anastácio, na capital paulista, concebida em 1916, para exportar carne para a Europa em guerra, mas que só entrou em operação três anos depois quando o conflito já havia terminado. Foi considerado à época o maior frigorífico da América do Sul, com capacidade para abater 240 bovinos e 300 suínos por hora.

Pedro Eduardo de Felício, médico-veterinário, professor da FEA – UNICAMP.

Fonte: 
Dr. Miguel Cione Pardi (1912 – 2005), o mais admirado inspetor de alimentos de origem animal do Ministério da Agricultura (1940 – 1970) do seu tempo. Dr. Pardi também foi professor titular da Faculdade de Veterinária da UFF (1961 – 1982).