Se não falta produto, não falta cliente
03/10/2013

Se não falta produto, não falta cliente

Quando se busca ganho de eficiência, por meio de novos sistemas que geram mudanças na estrutura física das lojas, certifique-se de que a redução de custos não vá virar perda de vendas

Na retaguarda da loja-matriz da rede Super Solução, o diretor de Logística da rede, o jovem Rodrigo, conversa com Tião, o veterano gerente da unidade.
— Tião, fechamos por um preço legal aquele sistema operacional integrado que pode ser monitorado on-line. Da entrada à saída dos produtos, controlaremos bem todo o processo.
— Parece bom, hein?
— Oh, se é... E era o que precisava para fazer a reforma, diminuir a área de estoque e aumentar a de venda, principalmente para a seção de perecível... ‘Tá tudo integrado. O produto saiu do caixa vendido, ‘cê vai ficar sabendo imediatamente pelo sistema aqui no estoque e o fornecedor também. Ele vai poder programar a entrega direto. Só vamos precisar fazer pequenos acertos, geralmente de caráter sazonal, até o sistema incorporar o histórico da loja.
— Vamos aumentar área de venda, mas também vamos aumentar o estoque de perecíveis, né?
— Não precisa. O que a gente tem já dá. Vamos ganhar eficiência no giro. Vamos reduzir esse trambolho enorme de administrar estoque grande.
— Olha! Pode dar um baita furo no sistema ou no processo. Aí, vamos perder venda por causa de falta de produto. Nosso supermercado é famoso porque ‘tá sempre com a gôndola cheia, menos de 8% de ruptura em média; não falta produto e, se não falta produto, não falta cliente.
— Os caras calcularam tudo— Mas não dá pra calcular vontade de cliente, a gente não sabe quanto vai aumentar a demanda com esse espaço todo pra exposição nem se os fornecedores vão cumprir os prazos sempre.
— Isso é problema do Comercial, eles vão ter de fazer acontecer.
— Não é assim. Tá tudo ligado, você não acabou de falar. Se ‘tá tudo ligado é problema da rede, da loja e até do fornecedor... Cliente não gosta de falta.
— Deixa de gorar. ‘Tô te dando uma baita notícia e você fica urubuzando.
— Só ‘tô falando de experiência minha... Se vamos ganhar tanto espaço, não custa guardar um cantinho do estoque para mais uma câmara fria; sei lá.
— Quem disse que não custa?
— Bom, ‘cê é que manda. ‘Cê que propôs e entende do sistema.
— Não sou eu que mando, mas o seu Otávio.
— Tá certo.
“Essa molecada vem cheia dos cálculos, cheia da ciência, mas não pensa no atendimento. É melhor perder um pouco aqui, mas garantir o produto do cliente, do que economizar e correr o risco de entregar ele de bandeja para o concorrente. Esses cabras precisam passar uma temporada no chão de loja.  Vêm tudo viciado da faculdade... Especialista”, pensou o veterano. 
“Esses caras das antigas não entendem o poder das novas tecnologias. Não sabem que eficiência operacional se faz no detalhe, nos mínimos detalhes.
Essa defasagem atrapalha a evolução da empresa. Sei não se o Tião é o cara certo pr’a matriz.”

— Choque de geração, Rodrigo, mas não acho que isso seja motivo pr’a você vir com esse papo sobre o Tião. Ele tem muito a ensinar, a mim e a você — disse seu Otávio, dono da rede Solução.
Rodrigo fez cara de “pode ser”, para não parecer tão pedante.
— Mas seu Otávio, cada vez mais a gente precisa de tecnologia e o Tião não sabe nada nem vai saber...
— O Tião não é burro e não precisa saber de tecnologia, precisa saber de supermercado e disso ele sabe.
— Sem dúvida, seu Otávio...
— Além disso, ele pode aprender o necessário pra gerir; não precisa mais do que isso...
— É que...
— Não dá para a gente ser radical, Rodrigo. Dizer que é e acabou. Na vida é difícil a gente ter certeza de alguma coisa. ‘Cê tem certezas demais... ‘Cê é um cara competente, mas precisava ter mais dúvidas. Hoje, acho que você está certo sobre o sistema. Fizemos as projeções, calculamos, mas no meio do caminho talvez a gente descubra que o Tião tem razão. Teoria é uma coisa, prática é outra. Se você estiver errado, acha que devo te mandar embora?
Rodrigo ficou sem saber o que dizer, sem graça.
— Eu acho que não... Conhece aquela história do Garrincha, que o técnico falou pr’o time que tinha de jogar assim e assado, ir pela direita, cruzar para o centroavante,
tabelar pelo meio, enfim, fazer um monte de coisa? No fim da conversa do técnico, Garrincha mandou a seguinte: “‘Tá legal, professor, mas ‘cê já combinou com o adversário isso tudo?”... Vai de vagar com o andor, que o santo é de barro.
Em menos de um mês, o sistema foi instalado. As reformas teriam início depois de alguns dias de funcionamento. Nas outras lojas, o sistema já estava funcionando há seis meses. Os resultados tinham sido tão bons nelas que a reforma para reduzir as áreas de armazenamento e ampliar as de vendas, com foco em perecíveis, foram feitas três meses depois da implantação do sistema.
Nelas, não houve necessidade de ampliar a câmara fria.
A eficiência do sistema evitou as rupturas...
— A eficiência do sistema é esta loja aqui, porque temos socorrido os caras direto e reto, mas ninguém vem consultar a gente. Você ‘tá vindo agora, Cleyton.
O Rodrigo acha que a gente tá urubuzando... Cada caso é um caso. A loja lá gira menos e às vezes, quando periga faltar produto na gôndola, a gente socorre, manda pra lá. Esta unidade aqui é quase um CD da rede — disse Tião a Cleyton, o gerente de Operações, companheiro de trabalho de Tião na empresa há mais de dez anos.
O veterano Tião deu detalhes de produtos cujas vendas cresciam mais depois das reformas, mas alertou sobre a diferença do perfil do consumidor entre as unidades.
— Acabaram de abrir uma universidade aqui, a molecada ‘tá alugando casa na redondeza. Quer dizer, comida pronta, prática vai vender a rodo, e é também o que mais cresce nas outras, que nem universidade no entorno têm... Olha, Cleyton, eu ‘tô seguro que se não aumentarem estoque de perecível da indústria nós vamos dá tiro no pé.
— É, talvez seja melhor refazer os cálculos e trabalhar com mais segurança o estoque desta loja. Vou falar com o seu Otávio. A gente se empolgou com os números das outras e cresceu o olho. Mas acho que não consideramos todas as variáveis...
Depois disso, Cleyton pediu um dedo de prosa ao patrão que concedeu, “com o maior prazer”. Chegando lá, ele expôs seu ponto de vista e disse que talvez valesse a pena segurar espacinho para aumentar o estoque de perecíveis na unidade reformada; ainda assim a área de venda ficaria bem maior. Contou que as outras lojas rodavam bem, mas às vezes pediam reposição emergencial à matriz. Apelou para o slogan da loja (“No Super Solução, o preço é justo e o produto está sempre à mão”) como argumento para sua tese e citou o ponto de vista de Tião, em quem confiava muito, por toda a experiência que tinha.
— Pois é. Eu ‘tava pensando nisso esses dias. No começo, ‘tava empolgado com a ideia. A gente sempre quer ganhar mais. Tem que controlar isso, ‘cê sabe? Eu desconhecia essa história de reposição emergencial de outras lojas. Amanhã, vamos ter a reunião e direi aos gerentes que o plano mudou — falou seu Otávio.
No dia seguinte, sem dar brecha para contestações, ele sentenciou como seria a reforma. A área de venda aumentaria, mas o estoque de perecíveis também.
Apesar de não ter dado margem para discussão, Rodrigo se pronunciou, pelo menos tentou.
— Mas seu Otávio, as contas...
— As contas são lindas, mas sempre administrei meu negócio com uma margem de segurança... Meu estoque ganhou muita eficiência com esse sistema. Ótimo. Mas não posso ser zoiúdo demais, não. O que perco, se é que perco com essa câmara fria, é bem menos do que perderia se arriscasse a verdade do meu slogan. Palavra ainda vale no comércio e se eu prometo produto à mão, não posso faltar com a promessa, ainda mais na minha matriz. A reunião foi imediatamente encerrada. O semblante de seu Otávio estava leve, até ria, já Rodrigo parecia querer sair dali o quanto antes. Estava envergonhado e se sentia derrotado pelo gerente de loja.
Mas depois avaliou e reconheceu que estava errado.
Despiu-se do orgulho, mas não foi se desculpar com o chefe, o que seria mais puxa-saquismo que qualquer coisa. Foi falar e elogiar Tião, que ao saber da reunião e da decisão não se envaideceu, ficou só aliviado. Ele não tinha orgulho da sua opinião, tinha convicção de que era a melhor alternativa para a loja.
Quando Rodrigo ia embora, ele porém teve sensibilidade para entender o gestor do quase antigo desafeto.
— Parabéns a você também, Rodrigo, que convenceu seu Otávio sobre usar a tecnologia. Eu não entendo muito dela, mas sei que é importante.
Depois de ser completada a reforma, com um mês de funcionamento, as vendas da loja já apresentavam crescimento de 20%, só os perecíveis tinham ampliado seu desempenho em 40% e o estoque, com a ampliação na área de perecíveis, dava conta do aumento da demanda (em todas as lojas), mas no limite. Seu Otávio e seus executivos não demoraram a perceber que era necessário dispor de um CD próprio, até porque a ideia da rede era expandir de três para cinco lojas em dois anos.
O dono do Solução mobilizou sua equipe que logo encontrou terreno onde o CD seria erguido em menos de quatro meses (havia obra para fazer a obra andar). Com menos de seis meses, ele começaria a funcionar. As novas lojas poderiam ser inauguradas no fi m do ano, sem problema, para aproveitar o Natal, e no ano seguinte a matriz poderia passar por outra reforma que traria aumento da área de venda e redução da de estoque.
Assim foi, e pouco tempo depois de ter realizado a maior expansão já feita em sua empresa, seu Otávio tomou uma decisão. O primeiro a saber dela foi Cleyton, até porque seu Otávio só poria a decisão em prática dependendo da resposta do
subordinado.
— Cleyton, direto ao ponto: ‘tô cansando de estar tão no dia a dia da operação e quero acompanhar mais de longe esse negócio aqui. Quero ser dono, não gestor, mas só vou fazer isso se você topar assumir a Diretoria-Geral da empresa. E aí?
Cleyton, sem pensar, com uma convicção que é mais fé e vontade do que certeza e análise, disse...
— Sim.
— Que ótimo! Agora, para o seu lugar, que vai ficar vago, tive avaliando, e acho que o Tião vai bem, vai não?
Sem pensar, com uma convicção que é fé, vontade, certeza e análise ao mesmo tempo, Cleyton disse...
— Acho uma boa.
— Agora, para o lugar do Tião na loja, ainda não tenho um nome. Vou falar com ele para ver se tem indicação. Quero alguém jovem, que traga o olhar da nova geração e que aprenda a tradição do varejo...


Wagner Hilário